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Showing posts from May, 2024

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Trama anda aí, por Clarissa Silveira

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*Texto enviado em 19 de maio 20 dias de duração da maior tragédia climática do RS. Estou no litoral e bordo feito aranha. "Trama anda aí" disse a mestra bordadeira.  Eu estava hospedando duas fotógrafas, uma de Salvador/BA e outra de Porto Alegre/RS, para uma residência artística no Sítio Libélula onde vivo em Rolante/RS. Na madrugada de terça pra quarta-feira dia 1o de maio, acordei as 3h da manhã com um estrondo longo, que parecia um trovão vindo da terra, de baixo pra cima. Pensei: deslizou o São Cristóvão... (uma parte da estrada que já havia deslizado uma parte nos ciclones de setembro de 2023). Ao acordar pela manhã, estávamos sem energia elétrica. Fomos até o Arroio Boa Esperança, próximo de casa e ele havia saído consideravelmente da calha. Numa estiada da chuva, fomos no centro da localidade saber quando voltaria a luz. Na estrada havia muita água descendo dos morros, em pontos onde eu nunca tinha visto água antes.   Quando chegamos na venda que tem gerador, muit...

Conterrâneos da solidariedade, por Alziro Rodrigues

*Texto enviado no dia 19 de maio de 2024. Me pego, às vezes, olhando os números, as estatísticas, temeroso de que tenham aumentado. Antecipo o sofrer de meus conterrâneos, num comportamento triste, meio sombrio até, mas tantas vezes inconsciente e difícil de controlar. Penso nas pessoas, às centenas, milhares atingidas que foram por mais um evento climático extremo. Tão extremo que lhes zerou a vida.   Para muitos gaúchos será uma penosa e desafiadora retomada de uma vida que ainda vai começar, levando na guaiaca apenas memórias, lembranças e afetos. Pessoas de todas as idades, famílias inteiras terão de reiniciar uma jornada que durante muito tempo será marcada pela esperança, pela determinação e pela força mental. De todos. Com todos. Para todos.   Recomponho meus pensamentos e deixo de lado os números, pois não são esses que importam, já que fazem parte do passado engordando mórbidas estatísticas. Temos que olhar para a frente, para o futuro. Temos muito o que fazer. Tenho ...

Suspensão, por Maíra Suertegaray Rossato

 * Texto enviado no dia 18 de maio de 2024. Tudo está em suspensão. A vida parece estar pausada, para, em algum momento, voltar.  De repente, uma história toda construída se vai, bens tão batalhados, memórias, bichinhos, familiares. Para tudo! Suspende tudo.  As luzes da cidade se apagam, os caminhos são interrompidos. O estado que foi assolado pela água, agora luta pela água de beber. Mas essa luta é desigual, pois quem tem grana e casa seca faz a limpa.  É um sentimento que, penso eu, ninguém consegue direito explicar, pois ninguém tinha a dimensão ou noção do que representariam enchentes desta proporção. Era coisa de filme, de modelo matemático, mas, certamente, era coisa distante. Parecia… É um misto de incredulidade, raiva, medo e tristeza. E tudo vem junto, de uma só vez.  Muitos ajudam, resgatam, cuidam; muitos estão atônitos tentando lidar com essa vida que, no susto, parou. Outros não tem forças para lidar com a tensão da situação.  Imagine simpl...

Sobrevivente, por Wilson Rosa

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024.   Na noite de quinta-feira, eu vi a água chegando, invadindo a rua pelos bueiros. O Guaíba na cota de inundação.  Na sexta-feira de manhã, tirei o carro da garagem. A água já invadia o pátio.  De tarde, chegou na cozinha. O que não era novidade pra quem mora no bairro São Geraldo, um dos mais atingidos por enchentes no Quarto Distrito.  Mas de noite, inundou tudo.  A geladeira dupla boiava, junto com o fogão novo que a falecida mãe comprou no ano passado. Fui dormir no segundo andar, junto com os inquilinos da pousada.  Acordei com barcos passando na janela. Mandavam sair.  Resistimos por mais um dia, achando que ia baixar logo, como sempre acontecia. Desta vez não.  Começava a maior tragédia climática da história do RS. Fomos resgatados por voluntários corajosos.  Deixei tudo pra trás, menos minha cachorra vira lata. No ponto de resgate, meia dúzia de pessoas, com dois botes retirando gente das casas...

Invisíveis, não: ESQUECIDOS. Por João Paulo Flores

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024.  São um ou dois quilos de agasalho que carrego? --- Telefono a um amigo que há tempo convida para visita. Agora me disponho – preciso tomar banho – ir à Zona Sul, conhecer a casa, lavar a alma com água e deslocamento físico. Entenda: há três ou quatro anos qualquer ida de um ponto a outro se tornou uma adição ao constante estresse que a mente hiperativa enfrenta. Ele está próximo ao local de um de seus trabalhos de iluminação que foram cancelados – relatos do amigo apavoram ao mencionar os arredores do Teatro Renascença. E não sendo possível a visita com intuito de banho, peço outro favor, uma vez que o curto lapso de coragem para sair se encerrou e retornara à incapacidade de deslocamento cujo mecanismo psicológico não cabe a mim decifrar. Biel traz os cigarros, um bocado de comiseração e espanto pelas consequências da chuva e sua parte na jam nostálgica que improvisamos, com toda a carga que décadas de convívio e os recentes anos de desen...

Impermanência, por Ana Carolina Pan

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024. É difícil acompanhar de longe a enchente.  Algumas fotografias são tão lindas, tão silenciosas, que jamais contarão a tristeza, o choro, o abandono, o frio, o próprio ruído da água para quem não ouviu.  Os vídeos são inacreditáveis, só que são reais. Carros em pé, amontoados, lama por todos os lados e em tudo, pessoas acampadas, cozinhando, dividindo os suprimentos recebidos, indo de barco ajudar outros que estão ilhados, sem maneira de sair de casa.  O que não tem nem como imaginar? O cheiro.  Não consigo dimensionar o cheiro da água de enchente acumulada durante dias. Queria reconhecer lugares que frequentei.  Como estão minha amada Oswaldo e Ramiro Barcellos? Como está o prédio que trabalhei que ficava dentro do Cais do Porto? Aposto que nem existe mais há tempos.  Quando eu voltar e revisitar esses lugares a mudança será profunda. E me pergunto quanto de mim ainda existe ali.  Queria que Saramago escrevesse...

Nanã: silêncio, transe e fuga, por Luís Felipe dos Santos

 A mitologia iorubá trouxe ao Brasil a figura de Nanã, uma deusa que vem do barro e que molda o ser humano pelas suas mãos. Nunca se viu tanto barro no Rio Grande do Sul como nos primeiros dias de maio — e Nanã terá muito trabalho, pois ele nos moldará a partir de agora. Silêncio As nuvens pesadas que estacionaram sobre o nosso Estado deixaram em Porto Alegre uma manta de silêncio. A ausência de palavras, de música, de festa, de burburinho, de conversas intensas, é a tônica dos últimos dias. Entre a Borges de Medeiros e a Andradas, existe a “Esquina Democrática”, que assim é chamada porque todos os grandes debates e manifestos do Brasil no último século por lá passaram. Essa esquina está vazia, e a água espreita ao lado, pois ali não pode subir. Moro em um lugar em que a água também espreita, mas não sobe.ra Desde fevereiro, estou em um apartamento de último andar no bairro Floresta, invulnerável à água que vem de baixo. Por cima, descobrimos fendas no telhado, que os funileiros di...

A eterna abobada da enchente, por Laura Peixoto

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024.   Saí de Lajeado debaixo de chuva.  Antes de chegar a Osório, o céu se abriu para o sol. E comemorei, assobiando uma canção que ouvia na rádio Cultura. Segunda-feira, minha filha mandou a mensagem, mãe, o rio tá subindo muito depressa. Em quatro dias, o vale, incomunicável. Nem sei quantas inundações já vivi. Lembro-me de uma que levou até as bolinhas de Natal. Escaparam pela janelinha do porão, boiando lindamente num janeiro dos anos 70.  De outra vez, a enchente pegou de surpresa o circo instalado no valão. O gerente, e também domador, salvou o elefante e dois pôneis, atados em uma árvore da praça. Em outra ainda, embarcamos na bacia de zinco feito bote - depois, a surra.  Sim, a desgraça dos adultos não é a mesma para as crianças. O bom era que por um tempo não tínhamos aula porque as salas também estavam submersas. Quando voltávamos à escola, o deboche, o bullying de hoje: “abobada da enchente”, coisa antiga que só fui de...

O dia de hoje, por Tatiana Cruz

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024. Uma garrafa de 500ml dá umas 4 xícaras grandes de café passado ou, no meu caso, 8 canequinhas esmaltadas.  Também é a medida exata para um banho de chaleira, levando em conta que você já terá se ensaboado, no seco mesmo, embaixo das axilas, pescoço, barriga, suas partes íntimas, as pernas e os pés, daí você só deixa água cair, quente, o luxo dos milênios.  Uma garrafinha dessas também dura cerca de 10 rodadas de escovação dos dentes (duas pessoas), pois você nunca mais desperdiça uma gota qualquer, você escova primeiro, faz um bochecho, cospe, coloca um pouquinho dela numa tampa de garrafa térmica, repousa as mãos e usa o resto para dar uma limpada na escova e na pia e bora volver às atividades do dia.  500 mililitros de água: estou girando em torno disso por cerca de 10 dias, mas ainda deliro em puxar uma descarga. A merda é uma merda: podem até tentar esconder, mas a merda cheira à merda, a merda tem cara de merda, a merda está ...

Desalojado da enchente, por Paulo de Vasconcellos

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024. Sou um desalojado da enchente, mas não faço parte das estatísticas oficiais. Duplamente excluído, portanto. Desde quarta-feira da semana passada, minha mãe e eu estamos num hotel. O apartamento em que moramos, na Avenida Borges com Riachuelo, o icônico Edifício Tabajara, não tem luz nem água há uns quinze dias. A água da enchente parou a duas quadras dele. Agora, escuto conversas no café da manhã de gente de todas as partes do país que veio para ajudar no resgate e no atendimento dos portoalegrenses e gaúchos. Agentes do SUS Nacional, da Defesa Civil de outros estados, da Força Nacional. Nessa quarta-feira, cinco caminhões geradores da CEMIG, a empresa estatal de energia de Minas Gerais, estacionaram na porta do hotel. Vieram, me informou um dos funcionários da empresa para devolver energia para Porto Alegre ou para as combalida estações de bombeamento da cidade. "Só aguardamos a definição da Equatorial para saber onde atuaremos", me ...

Carta de uma sobrevivente do emocional, por Magali de Rossi

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024. Sabemos que o hábito de escrever um relato do cotidiano, atravessa os séculos, e nele são depositados recortes de memórias pelas quais, se tornam um pedaço de uma vida e das múltiplas experiências diárias, como se fosse uma cápsula da alma, que de vez em quando recorremos para o alivio das emoções. Confesso que sou relapsa quando o assunto é registrar um dia em uma folha. Sou forçada pela dinâmica de um tempo que se apressa no que tange o imaginário e se concreta em um fim de dia em que os olhos mal podem com a paisagem devido cansaço da labuta.  Hoje é dia 17 de maio de 2024, meus olhos veem uma paisagem completamente diferente e o cansaço parece ficar em segundo plano, porque os olhos estão vidrados penetrados em um horizonte devastado. Uma mistura de sentimentos – Por um lado a gratidão por tantas campanhas de solidariedade e vidas salvas por pessoas comuns, ver as forças de estado unidas na calamidade.... Estar viva, de ter uma cama que...

O nosso possível, por Ana Maria Rosa

*Texto enviado no dia 16 de maio de 2024. Encher o coração de alegria por estar fazendo alguma coisa, finalmente. Algo além de esperar, além de transferir dinheiro de conta bancária, além de separar o que pode ser doado. A esperança de que agora, no movimento, no fluxo da vida, você será realmente necessário - com todo o seu corpo, a sua força completa. O voluntariado traz para cada um emoções que contemplam o grande desafio que a sociedade enfrenta como um todo: os espaços precisam ser preenchidos, a vida precisa continuar existindo. Mas essa mesma alegria que desperta ao se fazer possível a oferta de ajuda, se transforma em seguida na falência completa do ânimo: é só uma família, é só uma refeição, são só poucas pessoas… E o restante? A dinâmica é tão rápida que antes mesmo do regozijo já se instala a tristeza e a angústia. Aparecem naquele espaço onde você sabe que não é capaz, de fato, de dar conta dessa tragédia. O tamanho das dificuldades é maior do que um voluntário, maior do qu...

A casa alagada, por Julia Dantas

Publicado originalmente em juliaydantas.substack.com “Obrigada por colocar em palavras o que eu não conseguia”, me responde a Ana numa conversa sobre uma das incontáveis facetas péssimas dessa catástrofe em andamento. Dias depois ela me pergunta se eu estou pensando em escrever. Naquele momento, eu só pensava no meu apartamento com água pela cintura, sentia meu cérebro frito ou derretido e não conseguia nem ler. Mas ela tem razão, colocar coisas em palavras é um dos meus poucos talentos, e tem sido meu método mais confiável de sobrevivência e de conexão com os outros. Por isso este texto existe, para que meu cérebro volte a se comportar como um cérebro e para criar a possibilidade de que outras pessoas tenham aqui uma organização de palavras que elas precisavam mas não encontravam. Na sexta-feira antes de tudo, nos preparamos para um grande temporal. As ruas começaram a acumular água, então o Felipe voltou mais cedo do trabalho e tínhamos comida para atravessar o final de semana. No sá...